A História da Minha Terra

Os Celtas, os Visigodos, os Bárbaros, os Lusitanos, os Romanos, os Árabes, tantos e tantos povos que encheram de história esta pequena grande terra.
Quando a Ribeira de Santarém um dia for 'Amada' então os seus filhos e admiradores descobrirão que a História de Portugal é muito rica.
Esta a terra onde nasci, Princesa abandonada junto do rio que tanto lhe deu e tanto lhe tira.

segunda-feira, 7 de março de 2011

A Lenda do Cristo de Mont'Iraz

Gravura publicada na obra de Virgílio Arruda, 'Santarém no Tempo'


   Na igreja de Santa Iria, da Ribeira de Santarém, existe uma antiga escultura de Jesus Crucificado. Essa imagem, de expressão dolorosa e numa estranha posição, está ligada a uma lenda. E, segundo diz o povo, essa lenda vem de há muito tempo, quando a imagem em questão se encontrava ainda na capelinha do Monte dos Olivais, situada entre Santarém e a Ribeira.
Morava ali, então, uma jovem camponesa chamada Aninhas, órfã de pai; sua mãe, mulher de trabalho, sadia de corpo e de alma; e um moço fidalgo, formoso e distinto, sabendo apreciar a beleza sem, muitas vezes, apreciar a verdade.
Certo dia, a Aninhas e o tal moço fidalgo — que se chamava, de seu
primeiro nome, António — encontraram-se no campo, quando ela ia lavar à ribeira. O seu andar desenvolto e o seu rosto picante despertaram o interesse do fidalgo, que logo se apeou do cavalo para falar à bela camponesa.
— Olá Aninhas! Bem me pareceu que eras tu que eu via caminhar à minha frente!
Ela sorriu, buliçosa.
— Viva o senhor D. António! Que o traz para estes lados?
— Vim passear. Porque te admiras?
Aninhas teve um trejeito gaiato.
— Na verdade não devia admirar-me. Quem tem posses e nome para viver sem trabalhar pode passar o tempo de qualquer maneira...
Ele olhou-a uns momentos em silêncio. E retorquiu:
— Olha que eu também trabalho. Não são apenas aqueles que andam a cavar a terra, ou os que lavam a nossa roupa no rio que devem considerar-se trabalhadores.
Ela encolheu os ombros.
— Ora! O seu trabalho e os seus haveres queria eu!
— Aninhas! O meu trabalho não te posso dar. Mas os meus haveres...
A rapariga mostrou-se surpreendida:
— Que fará com os seus haveres?
Ele olhou-a intencionalmente:
— Podem ser nossos... se tu quiseres.
— Se eu quiser?
— Sim, se tu quiseres. És muito bela, sabes?
Aninhas franziu as sobrancelhas e preparou-se para se afastar:
— Não vá tão depressa, senhor D. António! Pode escorregar... e cair. Por mim... são horas de voltar a casa.
Ele barrou-lhe a passagem.
— Espera um pouco, Aninhas! O nosso encontro de hoje não é obra do acaso.
Novo espanto da rapariga:
— Como? Então... o senhor seguiu-me?...
— Há mais de um mês que te sigo. E hoje, ao ver-te, tão graciosa, disse para mim mesmo: «Hoje é que tenho de falar-lhe, custe o que custar!»
Aninhas sentiu dentro de si um misto de alegria e de receio. Olhou o jovem fidalgo como se fora a primeira vez que o visse. Achou-o belo, distinto, másculo. Corou visivelmente. E perguntou, atarantada:
— Mas… que me quer dizer?
Ele aproximou-se mais. Velou a voz. Parecia a tentação personificada.
— Aninhas! Gosto muito de ti!
Ela assustou-se.
— Cuidado, senhor D. António! Não me ofenda, por favor! Sou pobre, mas filha de gente honrada!
Ele pegou-lhe numa das mãos trémulas, e declarou:
— Gosto de ti como ainda não gostei de qualquer outra mulher! És o meu pensamento constante!
A rapariga levou uma das suas mãos à boca do fidalgo, como a impedi-lo de continuar a falar assim.
— Por favor!... Eu não sou mulher que lhe sirva!...
Ele beijou-lhe a mão pequenina, que fugiu, indo logo recolher-se no peito palpitante de Aninhas. Mas já D. António afirmava:
— Hás-de ser minha mulher!
Mais arregalados ficaram os olhos bonitos de Aninhas.
— Que diz, senhor fidalgo?... O senhor não poderá casar comigo. Não venha desnortear-me o coração!
Ele não se mostrou perturbado com a resistência.
— Se fores capaz de amar-me também... juro que casarei contigo!
Aninhas levou as mãos à cabeça, tomada dum verdadeiro alvoroço. Murmurou:
— Ó Senhor Deus do Monte, valei-me!
D. António sorriu. Falou cariciosamente:
— Aninhas! Porque te afliges tanto? Se me amas... como creio… serás feliz! Mas diz-me: também me amas?
Ela abanou a cabeça. Ele apertava-lhe as mãos. Aninhas sentia-se fraquejar. O fidalgo era tão belo… tão distinto!... Quantas vezes o espreitara pelas frestas da janela, ou por detrás de uma árvore, quando ele passava à sua beira, cavalgando no seu cavalo de pêlo dourado!...
Aninhas ainda tentou reagir:
— D. António! Por favor… deixe-me!
Mas ele estava já muito perto dela. Sentia-lhe o hálito, a respiração ofegante. Sabia-se envolvida pelo seu olhar ardente. E, pior ainda, pelos seus braços, que fechavam o círculo duma amorosa prisão. Debateu-se sem palavras. Mas ele reforçou:
— Juro que casarei contigo, Aninhas! Juro-o por esta oliveira à qual encostaste agora a tua cabeça!
— Só por isso é que jura?
— Juro também pelo Cristo que está no altar desta capelinha. Juro que só contigo casarei!
Ela sorriu. Sentiu mais forte o abraço que a aprisionava. E já não opôs resistência.

Alguns meses passaram. D. António saíra subitamente de Santarém, para uma missão bem longe da sua terra. E Aninhas, a alegre e buliçosa Aninhas, já não cantava nem ria. Começara a definhar. Preocupada, a mãe interrogava-a sem descanso. Mas ela mantinha-se numa evasiva que a todos intrigava. Uma tarde, porém...

Chovia. Uma chuva miudinha, enervante. Um dia triste, de um triste Outono. Junto à tosca mesa de madeira, Aninhas cismava ante a malga da sopa. A mãe olhava-a numa amargura que tocava as raias do desespero. Gritou-lhe quase:
— Filha, tu dás comigo em doida! Porque não comes? Não vês que já nem pareces a mesma rapariga? Acabarás por matar-te e matares-me!
As lágrimas deslizaram, silenciosas, pelas faces maceradas da rapariga. Mas não respondeu. A mãe insistiu:
— Aninhas! Vou tocar num assunto que desejaria que fosses tu a primeira a falar.
Pela primeira vez a rapariga reagiu:
— Que assunto, minha mãe?                                                               
— Julgas que eu sou parva?
— O quê?
— Sim! Pensas que alguma vez conseguimos enganar a nossa mãe?
— Que quer dizer?
Havia dolorosa expectativa no seu olhar. A mãe prosseguiu:
— Bem compreendi que andaste de amores com o D. António. Mas agora onde está ele?
Aninhas baixara os olhos. Deixara de chorar. Dir-se-ia a estátua do desalento. A mãe tornou:
— Para onde foi ele?
Aninhas respondeu sem levantar a cabeça:
— Não sei... Creio que foi para muito longe.
— E não voltará, não é assim?
A rapariga levou as mãos ao rosto. As lágrimas vieram, de novo, encharcar-lhe as faces.
— Não sei... Já nada sei!...
E numa exaltação repentina:
— Mas ele jurou! Fez uma jura sagrada! Terá de a cumprir!
A mãe de Aninhas desesperou-se:
— Juras! Juras! Ainda acreditas nas juras dos homens? Vê como ele fugiu! Oh, minha filha, para que acreditaste?
Como falando consigo mesma, Aninhas murmurou:
— Ele parecia tão sincero!
— Parecia... mas devias ter desconfiado!
Aninhas, subitamente, revoltou-se:
— E porquê? Porque não havia ele de gostar de mim? Os rapazes aqui todos me queriam! Todos!
— E por isso... envaideceste-te… e julgaste poder subir mais alto! Aí é que foi o teu engano!
— Porque era forçoso estar enganada?
— Porque és pobre e és do povo! Só um homem do povo casará contigo!
A revolta deu nova energia à pobre Aninhas.
— Mas ele jurou, mãe! Jurou pelo Senhor Crucificado que está na capela do Monte!
A mãe de Aninhas semicerrou os olhos. Guardou um pequeno silêncio. Depois foi até à janela da pequena casa onde habitava e, olhando o céu, sentenciou, solene:
— Pois bem! Se ele tomou esse compromisso diante de Deus, esperemos que seja obrigado a regressar. E então, havemos de ver se ele terá coragem de negar essa jura!

Mais uns meses passaram. Aninhas, embora triste, isolada, parecia contudo mais confiante, ou menos desesperada. O desabafo fizera-lhe bem. Mas certa vez alguém veio dizer, numa intenção reservada:
— Sabes, Aninhas, dizem que esta tarde chegará o senhor D. António!
Mãe e filha entre-olharam-se. A rapariga fez-se pálida. Encostou-se à ombreira da porta.
— Ah, sim? Então o que o traz por cá?
— Creio que não se deu com o clima das outras terras. Por isso voltou.
— Pois que volte! Tem a tia e os criados para o receberem. E uma linda casa, ao que parece.
— Lá isso é! Mas achas que ele virá casado?
E a velha alcoviteira olhava Aninhas de soslaio.
A mãe respondeu desabridamente:
— Sei lá, mulher! Cá por mim, não me interessa a vida dos outros! E sabes que mais? Tenho muito que fazer!
A outra sorriu, irónica.
— Pois olha: eu, se fosse a ti, interessava-me pela vida do senhor D. António!
— Porquê?
— Ora! Não te faças de novas! Adeus, que vou à vida!
A mãe de Aninhas resmungou. Mas ao reparar no brilho intenso do olhar da filha apressou-se a recomendar:
— Aninhas! Não esperes muito do teu fidalgo! Mas crê em Deus! Esse, sim! Só Ele pode ajudar-nos!

Depois de regressar à terra, D. António parecia ignorar a existência da pobre Aninhas. Oito dias passaram. Oito dias de angústia e incertezas. Oito dias de ansiedade. Oito dias de sofrimento. E então a mãe da rapariga enviou-lhe um recado para que fosse falar com ela à capela do Monte. Se ele não aparecesse, iria ela a sua casa. E D. António, embora contrafeito e pouco à vontade, foi à capela do Monte.

Eram onze horas da manhã. O sol rompera as nuvens baixas. Parecia abraçar a terra tão ávida do seu calor. A seiva corria pelas plantas a desabrochar. Era um renovar de vida, um grito de hossanas à Primavera.
Na capela, a mãe de Aninhas orava. Uma voz soou a seu lado:
— Olá, senhora Maria!
A mulher voltou-se:
— Deus o salve, senhor D. António!                                           
— Que me quer?
— Dar-lhe novas da minha filha.
Ele não demonstrou surpresa nem ansiedade. Perguntou, sereno:
— É verdade o que dizem? Creio que anda adoentada.
— Anda, sim, senhor D. António. E não calcula porquê?
— Na verdade… não posso saber... Há meses que não lhe falo...
— Mas já falou…
— Sim… falei…
— E até lhe disse coisas muito bonitas, não é verdade, fidalgo?
Ele concordou:
— Sim. Disse. Namorei-a durante alguns meses. Mas depois parti. Fui nomeado para um alto cargo. E compreende, decerto... Embora a senhora e ela tenham uma educação superior à outra gente do lugar... eu... bem vê...
— Sim, estou vendo! Mas não sabia que nós não éramos da sua alta estirpe?
— Sabia…
— Então porque veio apoquentar quem não o apoquentou?
D. António mordeu os lábios. A situação começava a tornar-se embaraçosa.
— Senhora Maria! Estou disposto a dispensar à Aninhas uma renda anual... Contudo, compreende... eu não posso casar com ela!
A mãe da rapariga assumiu uma atitude nobre.
— Senhor fidalgo! Guarde o seu dinheiro! Não foi isso que vim pedir-lhe.
— Então... que foi?
— Vim pedir-lhe que cumpra a sua jura.
— Qual jura?
— A que fez sobre aquela oliveira e sobre esta imagem de Jesus Crucificado, de que casaria com a minha filha!
D. António empalideceu. Mas respondeu sereno:
— Senhora Maria! Não me lembro de ter jurado.
Nesse mesmo instante um estrondo soou lá fora. Olharam pela porta entreaberta. A oliveira caíra no chão, como fulminada por um raio. A mãe de Aninhas gritou quase:
— Veja, senhor fidalgo, o resultado do seu perjúrio! Deus é grande!
Embora um tanto assustado, o fidalgo tentou chamar a si todo o seu sangue-frio.
— Foi uma coincidência, senhora!
Entretanto, o povo acorria ao local, atraído pelo estrondo e pela queda estranha da oliveira junto à capelinha.
De joelhos, a mãe de Aninhas orava alto:
— Ó Jesus Crucificado, valei-me! Valei-me! Se é verdade que o senhor D. António, aqui presente, jurou pela Vossa Santa Face casar com a minha Aninhas, dai-nos um sinal!
Os mais lépidos tinham já chegado à porta da capela e ficavam boquiabertos por quanto viam e ouviam. D. António enervou-se:
— Isto é uma tolice! Vou-me embora!
Mas um murmúrio começou crescendo. Alguém gritou:
— Olhem o braço do Senhor! Está a mover-se na cruz! Aponta alguém!
A senhora Maria gritou:
— Louvado seja Deus! Aponta para D. António!
O fidalgo estacou. Fitou a cruz. Viu o dedo do Senhor apontando-o. Ficou tremendo, de olhos esbugalhados. E caiu de joelhos, clamando:
— Perdoai-me, Senhor! Sim, eu jurei por Vós e vou cumprir a minha jura! Aninhas será minha mulher!

Foto: Otília Pires, in Facebook



E, segundo diz o povo, nessa posição estranha se conservou a imagem de Cristo, mesmo depois de D. António e a mãe de Aninhas terem corrido à casa da Ribeira. De expressão dolorosa a cavar-lhe a face, corpo torcido, como a querer desprender-se dos pregos em que o haviam crucificado, o Cristo do Monte Iraz é ainda visitado para lhe pedirem misericórdia.

Liceu de Santarém, no planalto de S. Bento (Antigo Monte dos Olivais e Antigo Monte Iraz, neste planalto onde hoje se situa o Miradouro de S. Bento existia a Capelinha onde decorre esta lenda)
Fontes: Arquivo Português de Lendas do CEAO da Universidade do Algarve 
         
            MARQUES, Gentil, Lendas de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores,   1997   [1962] , p.Volume IV, pp. 193-199

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