Gravura publicada na obra de Virgílio Arruda, 'Santarém no Tempo' |
Na igreja de Santa Iria, da Ribeira de Santarém, existe uma antiga escultura de Jesus Crucificado. Essa imagem, de expressão dolorosa e numa estranha posição, está ligada a uma lenda. E, segundo diz o povo, essa lenda vem de há muito tempo, quando a imagem em questão se encontrava ainda na capelinha do Monte dos Olivais, situada entre Santarém e a Ribeira.
Morava ali, então, uma jovem camponesa chamada Aninhas, órfã de pai; sua mãe, mulher de trabalho, sadia de corpo e de alma; e um moço fidalgo, formoso e distinto, sabendo apreciar a beleza sem, muitas vezes, apreciar a verdade.
Certo dia, a Aninhas e o tal moço fidalgo — que se chamava, de seu
primeiro nome, António — encontraram-se no campo, quando ela ia lavar à ribeira. O seu andar desenvolto e o seu rosto picante despertaram o interesse do fidalgo, que logo se apeou do cavalo para falar à bela camponesa.
— Olá Aninhas! Bem me pareceu que eras tu que eu via caminhar à minha frente!
Ela sorriu, buliçosa.
— Viva o senhor D. António! Que o traz para estes lados?
— Vim passear. Porque te admiras?
Aninhas teve um trejeito gaiato.
— Na verdade não devia admirar-me. Quem tem posses e nome para viver sem trabalhar pode passar o tempo de qualquer maneira...
Ele olhou-a uns momentos em silêncio. E retorquiu:
— Olha que eu também trabalho. Não são apenas aqueles que andam a cavar a terra, ou os que lavam a nossa roupa no rio que devem considerar-se trabalhadores.
Ela encolheu os ombros.
— Ora! O seu trabalho e os seus haveres queria eu!
— Aninhas! O meu trabalho não te posso dar. Mas os meus haveres...
A rapariga mostrou-se surpreendida:
— Que fará com os seus haveres?
Ele olhou-a intencionalmente:
— Podem ser nossos... se tu quiseres.
— Se eu quiser?
— Sim, se tu quiseres. És muito bela, sabes?
Aninhas franziu as sobrancelhas e preparou-se para se afastar:
— Não vá tão depressa, senhor D. António! Pode escorregar... e cair. Por mim... são horas de voltar a casa.
Ele barrou-lhe a passagem.
— Espera um pouco, Aninhas! O nosso encontro de hoje não é obra do acaso.
Novo espanto da rapariga:
— Como? Então... o senhor seguiu-me?...
— Há mais de um mês que te sigo. E hoje, ao ver-te, tão graciosa, disse para mim mesmo: «Hoje é que tenho de falar-lhe, custe o que custar!»
Aninhas sentiu dentro de si um misto de alegria e de receio. Olhou o jovem fidalgo como se fora a primeira vez que o visse. Achou-o belo, distinto, másculo. Corou visivelmente. E perguntou, atarantada:
— Mas… que me quer dizer?
Ele aproximou-se mais. Velou a voz. Parecia a tentação personificada.
— Aninhas! Gosto muito de ti!
Ela assustou-se.
— Cuidado, senhor D. António! Não me ofenda, por favor! Sou pobre, mas filha de gente honrada!
Ele pegou-lhe numa das mãos trémulas, e declarou:
— Gosto de ti como ainda não gostei de qualquer outra mulher! És o meu pensamento constante!
A rapariga levou uma das suas mãos à boca do fidalgo, como a impedi-lo de continuar a falar assim.
— Por favor!... Eu não sou mulher que lhe sirva!...
Ele beijou-lhe a mão pequenina, que fugiu, indo logo recolher-se no peito palpitante de Aninhas. Mas já D. António afirmava:
— Hás-de ser minha mulher!
Mais arregalados ficaram os olhos bonitos de Aninhas.
— Que diz, senhor fidalgo?... O senhor não poderá casar comigo. Não venha desnortear-me o coração!
Ele não se mostrou perturbado com a resistência.
— Se fores capaz de amar-me também... juro que casarei contigo!
Aninhas levou as mãos à cabeça, tomada dum verdadeiro alvoroço. Murmurou:
— Ó Senhor Deus do Monte, valei-me!
D. António sorriu. Falou cariciosamente:
— Aninhas! Porque te afliges tanto? Se me amas... como creio… serás feliz! Mas diz-me: também me amas?
Ela abanou a cabeça. Ele apertava-lhe as mãos. Aninhas sentia-se fraquejar. O fidalgo era tão belo… tão distinto!... Quantas vezes o espreitara pelas frestas da janela, ou por detrás de uma árvore, quando ele passava à sua beira, cavalgando no seu cavalo de pêlo dourado!...
Aninhas ainda tentou reagir:
— D. António! Por favor… deixe-me!
Mas ele estava já muito perto dela. Sentia-lhe o hálito, a respiração ofegante. Sabia-se envolvida pelo seu olhar ardente. E, pior ainda, pelos seus braços, que fechavam o círculo duma amorosa prisão. Debateu-se sem palavras. Mas ele reforçou:
— Juro que casarei contigo, Aninhas! Juro-o por esta oliveira à qual encostaste agora a tua cabeça!
— Só por isso é que jura?
— Juro também pelo Cristo que está no altar desta capelinha. Juro que só contigo casarei!
Ela sorriu. Sentiu mais forte o abraço que a aprisionava. E já não opôs resistência.
Alguns meses passaram. D. António saíra subitamente de Santarém, para uma missão bem longe da sua terra. E Aninhas, a alegre e buliçosa Aninhas, já não cantava nem ria. Começara a definhar. Preocupada, a mãe interrogava-a sem descanso. Mas ela mantinha-se numa evasiva que a todos intrigava. Uma tarde, porém...
Chovia. Uma chuva miudinha, enervante. Um dia triste, de um triste Outono. Junto à tosca mesa de madeira, Aninhas cismava ante a malga da sopa. A mãe olhava-a numa amargura que tocava as raias do desespero. Gritou-lhe quase:
— Filha, tu dás comigo em doida! Porque não comes? Não vês que já nem pareces a mesma rapariga? Acabarás por matar-te e matares-me!
As lágrimas deslizaram, silenciosas, pelas faces maceradas da rapariga. Mas não respondeu. A mãe insistiu:
— Aninhas! Vou tocar num assunto que desejaria que fosses tu a primeira a falar.
Pela primeira vez a rapariga reagiu:
— Que assunto, minha mãe?
— Julgas que eu sou parva?
— O quê?
— Sim! Pensas que alguma vez conseguimos enganar a nossa mãe?
— Que quer dizer?
Havia dolorosa expectativa no seu olhar. A mãe prosseguiu:
— Bem compreendi que andaste de amores com o D. António. Mas agora onde está ele?
Aninhas baixara os olhos. Deixara de chorar. Dir-se-ia a estátua do desalento. A mãe tornou:
— Para onde foi ele?
Aninhas respondeu sem levantar a cabeça:
— Não sei... Creio que foi para muito longe.
— E não voltará, não é assim?
A rapariga levou as mãos ao rosto. As lágrimas vieram, de novo, encharcar-lhe as faces.
— Não sei... Já nada sei!...
E numa exaltação repentina:
— Mas ele jurou! Fez uma jura sagrada! Terá de a cumprir!
A mãe de Aninhas desesperou-se:
— Juras! Juras! Ainda acreditas nas juras dos homens? Vê como ele fugiu! Oh, minha filha, para que acreditaste?
Como falando consigo mesma, Aninhas murmurou:
— Ele parecia tão sincero!
— Parecia... mas devias ter desconfiado!
Aninhas, subitamente, revoltou-se:
— E porquê? Porque não havia ele de gostar de mim? Os rapazes aqui todos me queriam! Todos!
— E por isso... envaideceste-te… e julgaste poder subir mais alto! Aí é que foi o teu engano!
— Porque era forçoso estar enganada?
— Porque és pobre e és do povo! Só um homem do povo casará contigo!
A revolta deu nova energia à pobre Aninhas.
— Mas ele jurou, mãe! Jurou pelo Senhor Crucificado que está na capela do Monte!
A mãe de Aninhas semicerrou os olhos. Guardou um pequeno silêncio. Depois foi até à janela da pequena casa onde habitava e, olhando o céu, sentenciou, solene:
— Pois bem! Se ele tomou esse compromisso diante de Deus, esperemos que seja obrigado a regressar. E então, havemos de ver se ele terá coragem de negar essa jura!
Mais uns meses passaram. Aninhas, embora triste, isolada, parecia contudo mais confiante, ou menos desesperada. O desabafo fizera-lhe bem. Mas certa vez alguém veio dizer, numa intenção reservada:
— Sabes, Aninhas, dizem que esta tarde chegará o senhor D. António!
Mãe e filha entre-olharam-se. A rapariga fez-se pálida. Encostou-se à ombreira da porta.
— Ah, sim? Então o que o traz por cá?
— Creio que não se deu com o clima das outras terras. Por isso voltou.
— Pois que volte! Tem a tia e os criados para o receberem. E uma linda casa, ao que parece.
— Lá isso é! Mas achas que ele virá casado?
E a velha alcoviteira olhava Aninhas de soslaio.
A mãe respondeu desabridamente:
— Sei lá, mulher! Cá por mim, não me interessa a vida dos outros! E sabes que mais? Tenho muito que fazer!
A outra sorriu, irónica.
— Pois olha: eu, se fosse a ti, interessava-me pela vida do senhor D. António!
— Porquê?
— Ora! Não te faças de novas! Adeus, que vou à vida!
A mãe de Aninhas resmungou. Mas ao reparar no brilho intenso do olhar da filha apressou-se a recomendar:
— Aninhas! Não esperes muito do teu fidalgo! Mas crê em Deus! Esse, sim! Só Ele pode ajudar-nos!
Depois de regressar à terra, D. António parecia ignorar a existência da pobre Aninhas. Oito dias passaram. Oito dias de angústia e incertezas. Oito dias de ansiedade. Oito dias de sofrimento. E então a mãe da rapariga enviou-lhe um recado para que fosse falar com ela à capela do Monte. Se ele não aparecesse, iria ela a sua casa. E D. António, embora contrafeito e pouco à vontade, foi à capela do Monte.
Eram onze horas da manhã. O sol rompera as nuvens baixas. Parecia abraçar a terra tão ávida do seu calor. A seiva corria pelas plantas a desabrochar. Era um renovar de vida, um grito de hossanas à Primavera.
Na capela, a mãe de Aninhas orava. Uma voz soou a seu lado:
— Olá, senhora Maria!
A mulher voltou-se:
— Deus o salve, senhor D. António!
— Que me quer?
— Dar-lhe novas da minha filha.
Ele não demonstrou surpresa nem ansiedade. Perguntou, sereno:
— É verdade o que dizem? Creio que anda adoentada.
— Anda, sim, senhor D. António. E não calcula porquê?
— Na verdade… não posso saber... Há meses que não lhe falo...
— Mas já falou…
— Sim… falei…
— E até lhe disse coisas muito bonitas, não é verdade, fidalgo?
Ele concordou:
— Sim. Disse. Namorei-a durante alguns meses. Mas depois parti. Fui nomeado para um alto cargo. E compreende, decerto... Embora a senhora e ela tenham uma educação superior à outra gente do lugar... eu... bem vê...
— Sim, estou vendo! Mas não sabia que nós não éramos da sua alta estirpe?
— Sabia…
— Então porque veio apoquentar quem não o apoquentou?
D. António mordeu os lábios. A situação começava a tornar-se embaraçosa.
— Senhora Maria! Estou disposto a dispensar à Aninhas uma renda anual... Contudo, compreende... eu não posso casar com ela!
A mãe da rapariga assumiu uma atitude nobre.
— Senhor fidalgo! Guarde o seu dinheiro! Não foi isso que vim pedir-lhe.
— Então... que foi?
— Vim pedir-lhe que cumpra a sua jura.
— Qual jura?
— A que fez sobre aquela oliveira e sobre esta imagem de Jesus Crucificado, de que casaria com a minha filha!
D. António empalideceu. Mas respondeu sereno:
— Senhora Maria! Não me lembro de ter jurado.
Nesse mesmo instante um estrondo soou lá fora. Olharam pela porta entreaberta. A oliveira caíra no chão, como fulminada por um raio. A mãe de Aninhas gritou quase:
— Veja, senhor fidalgo, o resultado do seu perjúrio! Deus é grande!
Embora um tanto assustado, o fidalgo tentou chamar a si todo o seu sangue-frio.
— Foi uma coincidência, senhora!
Entretanto, o povo acorria ao local, atraído pelo estrondo e pela queda estranha da oliveira junto à capelinha.
De joelhos, a mãe de Aninhas orava alto:
— Ó Jesus Crucificado, valei-me! Valei-me! Se é verdade que o senhor D. António, aqui presente, jurou pela Vossa Santa Face casar com a minha Aninhas, dai-nos um sinal!
Os mais lépidos tinham já chegado à porta da capela e ficavam boquiabertos por quanto viam e ouviam. D. António enervou-se:
— Isto é uma tolice! Vou-me embora!
Mas um murmúrio começou crescendo. Alguém gritou:
— Olhem o braço do Senhor! Está a mover-se na cruz! Aponta alguém!
A senhora Maria gritou:
— Louvado seja Deus! Aponta para D. António!
O fidalgo estacou. Fitou a cruz. Viu o dedo do Senhor apontando-o. Ficou tremendo, de olhos esbugalhados. E caiu de joelhos, clamando:
— Perdoai-me, Senhor! Sim, eu jurei por Vós e vou cumprir a minha jura! Aninhas será minha mulher!
Foto: Otília Pires, in Facebook |
E, segundo diz o povo, nessa posição estranha se conservou a imagem de Cristo, mesmo depois de D. António e a mãe de Aninhas terem corrido à casa da Ribeira. De expressão dolorosa a cavar-lhe a face, corpo torcido, como a querer desprender-se dos pregos em que o haviam crucificado, o Cristo do Monte Iraz é ainda visitado para lhe pedirem misericórdia.
Liceu de Santarém, no planalto de S. Bento (Antigo Monte dos Olivais e Antigo Monte Iraz, neste planalto onde hoje se situa o Miradouro de S. Bento existia a Capelinha onde decorre esta lenda) |
MARQUES, Gentil, Lendas de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 193-199
Sem comentários:
Enviar um comentário